sábado, 21 de abril de 2018

História de uma Cabeça Histórica

A Cabeça de Tiradentes

Quereis, minhas senhoras, que eu vos conte uma história para disfarçar o enfado destas longas e frigidíssimas noites de maio?

Mas, por melhor que seja a minha vontade, não sei como possa satisfazer ao vosso pedido... digo mal — cumprir as vossas ordens.

Este frio enregela-me as asas da imaginação; este vento glacial, que uiva pelos telhados, como uma matilha de cães danados, estes guinchos de corujas, que parecem lamentos de precitos, fazem a inspiração recolher-se toda encolhida aos mais íntimos esconderijos do crânio, tiritando de frio e de medo.

A falar-vos a verdade, minhas senhoras, tenho o espírito tão seco e estéril, como a caveira de um defunto enterrado há cem anos.

Ah! falei-vos em caveira!...

E não é que essa idéia de caveira veio despertar-me a reminiscência entorpecida pelo frio?!

Foi como a vara mágica de Moisés, que fez rebentar água em jorros da aridez do rochedo do deserto.

E pois vou contar-vos a história de uma caveira memorável.

Não se arrepiem, minhas senhoras; não é historia de almas do outro mundo, de trasgos, nem de duendes.

É uma simples tradição nacional, ainda bem recente, e própria de nossa terra.

Essa história eu a poderia intitular:


História de uma Cabeça Histórica


I


Era pelos fins do século passado; em 178...

Nesse tempo, esta capital de Minas, Ouro Preto  que então com justa razão tinha o nome de Vila Rica, era opulenta e populosa, como bem poucas cidades se podiam contar no Brasil.

Os governadores e fidalgos dessa época rodavam em ricas carruagens tiradas por possantes mulas por essas ladeiras, onde hoje só rincham pesados carros puxados a bois.

Havia quase sempre curros ou touradas, e cavalhadas magníficas; procissões de esplendor e riquezas deslumbrantes; espetáculos teatrais em que a arte suntuosamente protegida pelos governadores era cultivada com esmero no gosto da época; uma literatura própria, se bem que um tanto abastardada pela imitação do classicismo lusitano, literatura de que foram dignos representantes nomes até hoje célebres.

Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa são glórias que nunca mais se eclipsarão.

Havia regozijos e festas de toda a espécie, muito luxo, comércio interior ativo e o povo nadava em abundância.

E tudo isso por quê?

Porque naquela época o ouro por essas montanhas como que brotava à flor da terra.

O ouro era tão abundante que os próprios pretos cativos com as migalhas que escapavam das lavras de seus senhores edificaram mais de um templo magnífico, que até hoje aí estão, e as pretas, quando iam às suas festas costumeiras, polvilhavam a carapinha com areia de ouro.

Mas em contraposição a tudo isso, o povo gemia debaixo da mas vil, da mais infamante escravidão.

O bem-estar material era grande; mas a degradação moral era profunda.

Ali sobre aquele morro se erguia o vulto sinistro e ameaçador da forca, que nunca se desarmava, e em que a um simples aceno da tirania, apenas com uma aparente forma de processo, se imolava tanto o criminoso como o inocente.

Acolá, no meio daquela praça pública, em face de um templo cristão — como um sarcasmo vivo — até bem pouco se achava alçado o pelourinho, ainda mais infamante, em que o cidadão era azorragado publicamente, como o mais vil escravo.

Os capitães-mores também de sua parte castigavam arbitrariamente com açoutes, com tronco e até com palmatória as mais leves faltas de seus governados.

O ouro extraído das minas pelo braço do povo era na sua maior parte destinado a alimentar o luxo e a cobiça de seus opressores.

Minas, bem como o Brasil inteiro, era bem como uma vasta fazenda explorada em proveito da metrópole.

O povo era uma turma de escravos, que trabalhavam debaixo do azorrague de seus feitores — os governadores, capitães-mores guarda-mores etc.

A fazenda prosperava; mas os escravos indóceis começaram a se enfadar de arroteá-la só para o benefício de seus senhores.

II

E nessa época de riqueza e opulência, de servilismo e degradação social, no meio da praça principal desta cidade se via uma cabeça humana dessecada, cravada sobre um alto poste.

Este poste e esta cabeça eram noite e dia guardados por uma sentinela.

E à noite uma lanterna se acendia para aluminar o lúgubre espetáculo.

Havia dous ou três anos que este sinistro padrão da mais brutal e feroz tirania ali hasteado.

E por que razão esse cuidado em conservar ali tão guardado, tão vigiado, aquele triste e miserando resto de uma vítima há tanto tempo sacrificada?...

Para que aquela sentinela ali postada constantemente dia e noite?...

Temiam acaso que aquele crânio oco e ressequido ode há tanto tempo se extinguira a vida e o pensamento, de novo se reanimasse, e reunindo-se ao tronco esquartejado e esparso, desse outra vez o sinal da revolta ao povo oprimido?...

Ou receavam que esse crânio, hasteado na ponta do estandarte da emancipação, fosse o sinal certo da queda dos tiranos e do triunfo da liberdade, como esse célebre tambor que os soldados húngaros fizeram da pele de seu bravo chefe Ziska, morto no campo de batalha, tambor que quando rufava à frente deles era seguro prenúncio da vitória?

Pobre Tiradentes!... ainda que não fosse tão nobre e santa a causa por que te imolaste, a morte afrontosa que sofreste, e a crueldade, direi asquerosa, com que profanaram teus miserandos restos, eram motivos bastantes para abençoarmos tua memória e execrarmos a de teus algozes.

III

Era uma noite tenebrosa, horrenda, como essa que vai aí correndo. Impetuosa ventania, zunindo pelos tetos da antiga e opulenta Vila Rica submersa no sono e no silêncio, impelia pelos ares camadas de espessa e frigidíssima neblina, e fazendo oscilar sobre seu poste a caveira do mártir da liberdade com sinistro estrépito, agitava-lhe os compridos cabelos castanhos ainda aderentes ao crânio.

Parecia que aquela cabeça heróica, bafejada pelo sopro da liberdade que rugia das montanhas, em seu fúnebre oscilar, ameaçava ainda os tiranos, e lhes predizia a próxima ruína.

O pálido clarão da lanterna, que balouçava ao vento, ondulava lúgubre sobre a ossada branquicenta, desenhando ao vivo as cavidades negras dos olhos e a dentadura amarelada.

O pobre sentinela, talvez considerando que estava de guarda a um crânio ressequido que a ninguém podia fazer mal, e que longe de excitar a cobiça, só poderia inspirar horror, o sentinela sentado no chão, recostado sobre uma pedra, e com a arma sobre os joelhos, deixava-se furtar do sono.

Um vulto todo rebuçado surge por entre as trevas, e se aproxima cautelosamente do tremendo poste.

Com uma comprida vara que trazia, faz saltar do poste a caveira, apanha-a rapidamente e de novo desaparece com o favor da treva e do nevoeiro.

Tudo isso foi feito com tal presteza, que quando o guarda, despertado pelo som rouco da caveira ao cair, deu fé do ocorrido, já era tarde. Viu apenas uma sombra engolfar-se e desaparecer através do nevoeiro.

IV

Conheceis essa comprida rua, que na extremidade ocidental desta cidade se estende isolada por uma encosta acima, como a cauda de um lagarto.

Chama-se a rua das Cabeças.

A origem desse nome sinistro vem de que aí se fincavam na ponta de estacas as cabeças dos míseros enforcados pelas esquinas dos becos.

— Para servir de exemplo e escarmento aos povos — diziam os tiranos.

Mas os fatos vieram depois comprovar-lhes que erravam procedendo assim.

No alto dessa rua, não há muitos anos, existia uma velho de vida misteriosa e retraída, a quem o povo olhava com respeito e curiosidade.

Vivendo sozinho em uma casa quase arruinada, comunicando-se raras vezes com seus semelhantes e só em caso de necessidade, parecia um anacoreta ou um homem possuído de singular monomania.

Entretanto os curiosos, que nunca faltam nas cidades, espiolhando um dia pelas fendas das arruinadas paredes da morada do velho, devassaram singularíssimo segredo de sua vida íntima.

Viram-no abrir com ar de religioso respeito a portinhola de um nicho ou de um armário praticado na parede, tirar dele um crânio humano branco e mirrado, depô-lo silenciosamente sobre uma mesa colocada em frente a um oratório, e ajoelhando-se depois com os braços encostados sobre a mesa, assim ficar por longo tempo, em atitude de profunda meditação ou no êxtase de uma oração.

Mas esta descoberta, como bem se pode ver, em nada veio dissipar o mistério que pairava sobre a vida do velho. Pelo contrário vinha ainda rodeá-la de mais um sinistro prestígio, e em vez de acalmar a curiosidade do povo, concorreu para mais excitá-la.

Que crânio seria esse, que o velho guardava, e parecia venerar com religioso acatamento?

Seria a relíquia de algum ente amado?

Seria o velho algum assassino, que em expiação de seu crime queria ter sempre diante de si o crânio da sua vítima para lacerar continuamente a consciência com o cilício do remorso?...

Seria algum cenobita imitador de São Jerônimo, que tinha sempre diante de seus olhos a caveira humana a fim de conservar contínuo presente ao espírito o nada da existência?

A maior parte do povo porém ficou tendo o pobre velho por um grande feiticeiro, e por isso tinha-lhe medo e o respeitava.

Assim pois descobrindo aquele segredo da vida do velho ainda a tornaram mais misteriosa e quase sinistra.

Pouco tempo depois morreu o velho, foi pobremente enterrado no adro relvado da capela do Senhor Bom Jesus, sita na mesma rua, e sua casa tombando em ruínas, ficou abandonada, pois se já em vida de seu dono era objeto de terror para o povo, muito mais o ficou sendo depois de seus falecimento.

Não foi senão alguns anos depois, que se veio no conhecimento, de que o velho misterioso não era outro senão o ousado roubador da cabeça do Tiradentes, e que a caveira, que com tão religioso cuidado guardava e venerava, era a daquele ilustre e desditoso mártir do primeiro movimento emancipador.

Contou depois isto alguém que era o único depositário do segredo do velho, e que por ignorância ou indiferença ligava pouca importância a um fato tão curioso.

Que é feito porém desse crânio histórico, que tão generosos pensamentos abrigou outrora em seu seio?

Quereria seu possuidor, em sua fanática veneração pela liberdade e por aquela relíquia do seu principal mártir, que ela fosse com ele enterrada, e seria cumprida a sua última vontade?

Ou ficaria essa relíquia — digna de ser encarcerada em uma urna de ouro — calcada debaixo dos entulhos das paredes esboroadas da habitação do velho?... Ninguém o sabe.

Os fatos que acabo de narrar, posto que pouco conhecidos, são tradicionais.

Perguntem aos velhos, e mesmo a alguns moços mais curiosos, das cousas antigas da nossa terra, e se convencerão de que esta história não é de minha lavra.

Bernardo Guimarães, Ouro Preto, maio de 1867


Notas explicativas

1 - Ouro Preto foi a capital da "Província das Minas Geraes" de 1720 a 1897. Bernardo Guimarães nasceu, casou-se e morreu nessa cidade, que foi o centro do Ciclo do Ouro, quando então era conhecida por Vila Rica. Hoje, por tudo o que significou na história do mundo, Ouro Preto é reconhecida, pela Unesco, como Patrimônio da Humanidade. [Acima].

2 - Nesse trecho encontra-se uma contundente opinião de BG a respeito da literatura Arcadista dos Inconfidentes: "abastardada pela imitação do classicismo lusitano". O comentário revela também a clara opção do autor por um linguajar nacional, rico em expressões abrasileiradas que ele próprio colhia; por uma narrativa impregnada de pitorescos regionalismos, que muitos críticos desinformados confundiram com pobreza vocabular. [Acima].

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